ANÁLISE DOS SAMBAS 2017 – BEIJA FLOR

ANÁLISE DOS SAMBAS 2017 – BEIJA FLOR 

Escrito por Hyder Oliveira.


Eu confesso que sou suspeito para falar dessa obra de arte feita samba. Como cearense, sinto-me homenageado com o rico enredo que será levado à avenida pela agremiação nilopolitana. Mas muito além disso, a Beija-Flor conta com um sambaço, tido por muitos como o melhor do ano. A maior falha é a ausência de um glossário específico para os termos em tupi-guarani presentes na sinopse e, consequentemente, no samba, como aconteceu de modo exemplar na sinopse da Imperatriz. Além disso, presume que todos tenham lido o livro, o que sabemos que não é verdade. A história de amor da bela Iracema será abordada através dos versos, que vamos analisar a partir de agora.

A JANDAIA CANTOU NO ALTO DA PALMEIRA
NO NOME DE IRACEMA
LÁBIO DE MEL, RISO MAIS DOCE QUE O JATI
LINDA DEMAIS CUNHÃ-PORÃ ITEREI
VOU CANTAR JUREME, JUREME, JUREME
VOU CONTAR JUREMA, JUREMA
UMA HISTÓRIA DE AMOR, MEU AMOR
É O CARNAVAL DA BEIJA-FLOR 

O refrão principal é longo e conta com muitas palavras típicas da linguagem tupi, o que seria um risco imenso. Mas consegue ser o ponto mais forte do imponente samba. Além de uma melodia animada e ressaltada pela voz do mítico Neguinho, cada verso reflete com extrema felicidade o objetivo central do enredo: destacar a bela figura de Iracema, sua raiz, a história de amor com o homem branco e a contribuição da obra literária para o carnaval deste ano. No canto da jandaia, uma ave da família dos periquitos, podemos perceber a bucólica vida da índia “cunhã-porã”, vistosa, bela e recatada. A pureza de Iracema entra em um dilema com a avassaladora paixão pelo colonizador português Martim Soares Moreno, que a faz renunciar aos nobres valores de sacerdotisa da tribo, revelando o segredo da jurema, bebida alucinógena considerada sagrada pela tribo dos tabajaras. De uma história de amor nasce uma lenda que move o Ceará.

ARAQUEM BATEU NO CHÃO
A ALDEIA TODA ESTREMECEU
O ÓDIO DE IRAPUÃ
QUANDO A VIRGEM DE TUPÃ SE ENCANTOU COM O EUROPEU
NESSA CASA DE CABOCLO HOJE É DIA DE AJUCÁ
DUAS TRIBOS EM CONFLITO
DE UM ROMANCE TÃO BONITO COMEÇOU MEU CEARÁ

PEGA NO AMERÊ, ARETÉ, ANAMA
PEGA NO AMERÊ, ARETÉ, ANAMA

A primeira estrofe é profunda e nos apresenta um pouco os costumes indígenas já presentes no século XVII. Começa com todo o respeito à figura do pajé Araquém, pai de Iracema e líder espiritual da tribo tabajara. Ao tocar o chão, magicamente conseguia abrir as entranhas da terra. Foi aí que Iracema e Martim se esconderam e a jovem dos lábios de mel perdeu a virgindade, para o ódio de Irapuã, guerreiro tabajara corajoso que era apaixonado por Iracema. A jovem vestal, pura, consagrada a Tupã (maior divindade indígena) tinha entregado o seu corpo a um europeu, amigo de pessoas da tribo rival, dos pitiguaras (ou potiguaras), o que era considerado inaceitável para Irapuã. Também fala do ritual do adjunto da jurema, com a polêmica bebida alucinógena ajucá, de rituais típicos, que eram vistos pelos brancos como magia negra. Com o ciúme acentuado do guerreiro tabajara com o português Martim, defendido pela tribo pitiguara, os conflitos foram inevitáveis. Mas nada que fosse capaz de suprimir a linda história que começava a dar seus primeiros frutos. O mini-refrão (pega no amerê arete anama 2x) é o maior risco que a escola corre de perder décimos preciosos nesse samba. Literalmente, são palavras que não fazem sentido juntas. Segundo os autores, fala da fumaça dos incensos e narguilés (amerê), que conduzem a uma grande festa (arete) para o envio da família (anama) à sua purificação. Cabe aos jurados entenderem o que passa na cabeça deles ou não. Sendo sincero, achei esse trecho forçado para levantar a arquibancada, mas incapaz de prejudicar o andamento da bela letra.


BEM NO CORAÇÃO DESSA NOSSA TERRA
A MENINA MOÇA E O HOMEM DE GUERRA
ELE SENTE A FLECHA, ELA ACERTA O ALVO
ÍNDIA NA FLORESTA, BRANCO APAIXONADO
VEM PRA MINHA ALDEIA, BEIJA-FLOR
TABAJARA, PITIGUARA BATE FORTE O TAMBOR
UM CHAMADO DE GUERRA, MINHA TRIBO CHEGOU
RECLAMANDO A PUREZA DA PELE VERMELHA
BATE O CORAÇÃO DE MOACIR
O MILAGRE DA VIDA, ME FAZ UM MAMELUCO NA SAPUCAÍ
OH LINDA IRACEMA MORREU DE SAUDADE
MULHER BRASILEIRA DE TANTA CORAGEM
UM RAIO DE SOL A LUZ DO MEU DIA
ILUMINADA NESSA MINHA FANTASIA

A última estrofe é uma história viva sendo contada. Impressionante como em tão poucos versos existam tantos acontecimentos. Começa com a narração do encontro dos dois protagonistas do livro. A moça pura e consagrada a Tupã e o guerreiro europeu. Depois de três dias perdido no meio da mata, Martim acaba ficando de frente com Iracema, que tomou um susto e, num impulso, acerta o rosto dele e volta correndo para a tribo. Mais do que o rosto, a índia flechou o coração de Martim e o convidou para conhecer o que de mais belo ela tinha a oferecer. Como citei na estrofe anterior, houve o conflito entre as tribos tabajaras e pitiguaras pelo ciúme de Irapuã e pelo conservadorismo da tribo de Araquém, que não se conformava com a pureza perdida de Iracema. Depois de muitas batalhas e guerras, nasce o primeiro caboclo (ou mameluco) brasileiro: o Moacir, legítimo cearense. Com o amado na guerra, Iracema foi definhando de saudade e se enfraquecendo, até morrer no momento do retorno de Martim, ainda tendo tempo de apresentar o filho ao pai. A força dessa mulher, que enfrentou os paradigmas e ilustra a beleza e o amor femininos, serviu de base para o carnaval de 2017 da Beija-Flor de Nilópolis.


Cabe salientar todo o contexto poético-histórico de José de Alencar em sua obra, utilizando muito bem a palavra “Iracema”, que é um anagrama da palavra “América”, representando a civilização europeia (Martim) conquistando a natureza virgem (Iracema). Dessa união, nasceu o nosso país, miscigenado e cheio de caras, raças e expressões. Iracema é o traço mais vivo do que é o Brasil. Lindo enredo, genial samba. Vem para as cabeças e é, seguramente, uma das grandes favoritas ao título do carnaval deste ano. Voa, Beija-Flor!!! 



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