Antes de qualquer coisa, é importante ressaltar a dificuldade de abrir os desfiles da sexta-feira. A agremiação já não é das preferidas dos jurados de uma forma geral, então a melhor saída é arriscar. E a escolha de um carnavalesco experiente como o Fábio Borges pode render bons frutos. O enredo é corajoso, audacioso e, particularmente, me agrada bastante. Carnaval é a mais pura demonstração da arte e abre espaço a diversas formas de ritmos e danças. Bela sacada, iremos ver como é sambar na ponta do pé. Justamente por isso, o detalhe negativo fica por conta do pouco enfoque dado ao balé propriamente dito, pois o título do enredo dá a entender que a abordagem do desfile seria em torno dessa dança. Porém, para falar das raízes de sua comunidade através da arte dos movimentos, a Pérola vem com uma história muito interessante e promete abrir dignamente o carnaval 2016.
O território onde hoje se situa o bairro de Vila Madalena fazia parte de uma imensa floresta, cenário grandioso onde era encenado um apoteótico bailado. Os sons da Mata Atlântica criavam uma sinfonia selvagem, de ritmo bárbaro e grandioso, enquanto bandos de araras num sincronizado voo exibiam sua coreografia aérea. Na sinuosa dança das águas dos igarapés, cardumes de peixes encenavam seu balé aquático.
No chão, animais dançavam para seduzir suas fêmeas, e serpentes em suave dueto deslizavam entre arbustos. Embaladas pelo vento, as árvores iam e vinham num ritmado "balancê".
Início que remete às raízes da dança, em meio ao bailado de todo o ecossistema. Aqui vemos um traço de contemplação da vida como um todo. A dança é a personificação da comunicação universal. Arte da caça, camuflagem, forma de diálogo e técnica de conquista, o balé sempre foi a expressão mais recorrente de contato entre as espécies desde o começo do mundo.
Os índios, como parte integrante dessa imensa floresta, cantavam e dançavam por qualquer motivo, inspirados por esse balé da natureza.
Presos aos tornozelos dos hábeis bailadores, chocalhos feitos de seixos, sementes e dentes, marcavam o compasso da dança. Canindé, Canindé, cantavam e dançavam pedindo vitória na guerra.
Os jesuítas, em seu processo de catequese, para atrair os silvícolas introduziram as danças nativas nos rituais da nova religião. Criaram versos em tupi para os cateretês que os índios dançavam em frente às ocas. Adultos vestidos de penas e listrados de urucu, acrescentavam o crucifixo a seus adornos, e compunham as orquestras onde a guararapeva acompanhava o canto e a dança dos novos rituais.
Chegando ao período de povoamento do nosso país, nada mais justo que homenagear os primeiros donos do solo brasileiro, os indígenas, que sempre tiveram a arte da dança como sua principal expressão corporal e cultural, passando por cultos e crendices. Em meio à catequese, os jesuítas conquistaram a confiança dos índios através do balé harmônico da tradição cristã.
Nessa "zona rural" de São Paulo de Piratininga, passavam tropeiros com seu imponente bailado equestre, e os "cortadores de mato" dançavam a catira e o fandango.
Os negros, que se refugiaram nessa "vila dos farrapos", ao fugir da escravidão, encontraram na música e na dança o consolo à crueldade dos castigos que tentavam esquecer. A grande variedade de instrumentos de percussão facilitava a execução de notável polirritmia, com um extenso quadro de danças dramáticas fetichistas, os batucajés, ou as alegres danças profanas, os desenfreados batuques. Aqueles vindos de Angola praticaram aqui os rituais de coroação do Rei do Congo. Um belo cisne negro em seu voo migratório, fascinado pela dança dos homens de sua cor resolve ficar por aqui.
Balé de imposição, balé de resignação, balé de resistência. Que trecho sensacional de sinopse. O gesto que simboliza autoridade e arrogância é o mesmo que simboliza sobrevivência e fuga provisória de suas mazelas. A dança do negro se tornou símbolo de superação e foi responsável pelo surgimento da capoeira e inspirou diversos movimentos e gêneros musicais, como o samba.
Quando essa Vila Madalena não passava de um amontoado de casas e pequenas chácaras, seus moradores iam de casa em casa encenando a Folia de Reis, e dançavam a quadrilha em volta de fogueiras. Mas o espírito festivo que conhecemos na Vila Madalena de hoje, chegou com os estudantes da USP, "dançarinos saltimbancos" que encheram o bairro de alegria e irreverência.
Chegaram os hippies e seus cabelões , e o som do roqueiro Piriri "balançou" os bares e as ruas da "Vila Woodstock". Entre girassóis, purpurina, harmonia e simpatia, a irreverência dançou no "Santa Casa". A Feira da Vila abriu as portas para a entrada de "bailarinos giramundo", brincantes que chegaram com a capoeira, o frevo, o reisado, o maracatu, o boi-bumbá e a gafieira.
Dançarinos foliões vindos do mundo inteiro escolheram a vila como cenário para a encenação da gigantesca "ôla" que deixou saudades depois da Copa do Mundo. Pelas ruas que dançam num sobe-e-desce, os blocos carnavalescos arrastam multidões: Sacudavila, Os Madalenaâ?¦
Pois é mesmo o samba, Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, que traduz a alma dançante da Vila Madalena. Ao som da bateria da Pérola Negra, até os mais silenciosos vizinhos, os moradores do Cemitério São Paulo, vão "balançar o esqueleto".
Chegamos ao bairro da Pérola Negra, o começo da ocupação da Vila Madalena. Tradições, brincadeiras, orações, teatro, entretenimento. A dança vai se aperfeiçoando com o passar do tempo e cada geração vai contando sua história através das músicas, que embalam trilhas sonoras de tantas pessoas, encurtando caminhos, amenizando saudades, espantando males, criando estilos e formando mentalidades. É a arte mais democrática do planeta, podendo ser realizada na rua, em estádios, igrejas, teatros, sambódromos... até quem já morreu entra na festa. Afinal de contas, é carnaval!!!
Com um samba bom, Juninho Branco terá a responsabilidade de alavancar pontos fundamentais para a manutenção da simpática Pérola no Grupo Especial de 2017. Será um grande desafio, mas há chances consideráveis. Ótimo enredo, quem chegar atrasado no Anhembi poderá perder uma agradável surpresa.
Por: Hyder Oliveira
Revisão: Lívia Martins
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